quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Projeto de Lei nº 19.203/2011, que prevê que o Estado da BAHIA não contrate bandas ou artistas que, com suas músicas, possam ofender a figura feminina


Fotos: Tiago Melo/BN

"Acho que a censura é uma coisa absurda e nós não podemos conviver com ela, agora, precisava se botar esse debate na pauta da sociedade e do poder público."

Por James Martins

Bahia Notícias – O que levou a senhora a criar o Projeto de Lei nº 19.203/2011, que prevê que o Estado não contrate bandas ou artistas que, com suas músicas, possam ofender a figura feminina ou fazer apologia à violência?

Luiza Maia – Veja só, depois do governo do presidente Lula, essa questão da desigualdade entre homens e mulheres entrou na pauta do governo, é um projeto. O governo criou o Ministério das Mulheres para quê? Para chamar para si a responsabilidade do Estado, do governo, de acabar com a desigualdade e, por conseqüência, acabar com a violência, a discriminação. Então, não podia esse mesmo governo, paradoxalmente, estar financiando bandas, músicas que incentivam a violência, a desvalorização, o desrespeito, a discriminação contra a mulher. Eu que nunca fui deputada, tenho cinco meses só de deputada, assim que cheguei na Assembleia fiquei imaginando como a gente poderia barrar essa cultura, porque hoje essa coisa na Bahia chegou a um limite que teria que ser tomada uma providência. E também atendendo a uma demanda do movimento feminista.

BN – Mas esta lei não se configura uma espécie de censura?

LM – É isso que têm me acusado, de que eu estou querendo restituir a censura, acabar com o estilo pagode e não tem nada a ver. Eu sou uma pessoa que lutei contra a ditadura militar e não concordo, acho que a censura é uma coisa absurda e nós não podemos conviver com ela, agora, precisava se botar esse debate na pauta da sociedade e do poder público. O projeto está tramitando, não tem nada contra nenhum gênero musical e muito menos o resgate da censura.

BN – Mas, na prática, no momento da execução da lei, como seria um show que tivesse um samba como “Judiaria”, do Lupicínio Rodrigues, que fala “pra que você saia sem eu lhe bater”; ou “O Maior Castigo Que Te Dou”, de Noel Rosa; ou mesmo a “Geni e o Zepelim”, do Chico Buarque, que se refere a um travesti, mas pode ser confundido com uma mulher? De qualquer forma, ninguém deve jogar pedra em um travesti. Essas músicas seriam vetadas? Um show de Chico na Bahia que tivesse essa música no programa, ela seria excluída, como funcionaria isso?

LM – Se você for ver os grandes nomes, como esses que você citou, eles têm um conteúdo machista na sua música, mas eu acho que a banalização da violência, do desrespeito, da utilização do corpo da mulher como objeto sexual é diferente. Agora, eu acho que machismo tem de todo tipo, desde que o mundo é mundo, desde que a gente conhece a história da civilização o machismo está colocado, é uma realidade, as mulheres reagiram e têm reagido contra essa situação. Mas você não pode comparar uma música de Noel Rosa com certas músicas que, se você quiser, eu leio aqui algumas... [recitando]. “Quer comer, quer beber, se esconder no meu fumê, dar rolé, é a geral assim, é a geral, é a geral, é em cima do pau, é embaixo do pau, na frente do pau, de quatro e crau”. É diferente. Por exemplo, Amélia. Tem música mais machista que esta? Agora a banalização do corpo da mulher, essa mulher estereotipada que tem que estar seminua dançando aquelas danças erotizadas... A Geni, por exemplo, eu acho que é uma realidade retratada ali, mas não é uma apologia a agredir o travesti.

BN – As músicas são diferentes, certo. Mas, as músicas machistas dos grandes compositores não podem ser configuradas como músicas que agridem e ofendem a imagem da mulher e teriam que ser enquadradas da mesma forma independente da qualidade artística? Porque as diferenças entre a música de Noel e a do É O Tchan são estéticas. Se o Noel Rosa fizer uma música falando da bunda da mulher ou dos seios...

LM – [interrompendo] Depreciativa à mulher eu acho também que tem que ser evitada. Não tenho isso de porque é um grande artista. Para mim é até pior, porque é uma pessoa de nome. Acho que hoje tentam também fazer uma estigmatização porque o pagode é uma música das classes mais excluídas, da periferia, do gueto... não é isso. Eu acho que por trás disso também tem a utilização dos grandes produtores dessa cultura de massa que não pensam na qualidade da música e sim no ritmo e em vender. Utilizam, inclusive, talentos jovens da periferia porque eles querem essa indústria massificante de vender o produto e estão pouco se importando se o conteúdo daquelas músicas agride, ofende a mulher, faz apologia à violência... acho que não é isso. E a gente então precisa enfrentar essa discussão. O projeto está tramitando ainda, estamos debatendo. Nós viemos agora de um debate com a vereadora Léo Kret, que, em um primeiro momento, teve uma reação achando que era porque era música do negro, música da periferia e, no entanto, hoje já assinou o abaixo-assinado. Qual foi o meu objetivo também? Botar isso na pauta da sociedade, dos poderes, da escola, das universidades... porque não se pode deixar mais da metade dos seres humanos serem depreciados, agredidos, desvalorizados, desrespeitados por um segmento artístico da forma que está acontecendo e ninguém reagir. Então, eu te digo porque tenho recebido algumas críticas, algumas porradas, mas, a grande maioria da pessoas tem apoiado.


"Eles eram burros. Quando Chico Buarque mudou de nome, eles deixaram passar todas as músicas."

BN – E, para decidir até que ponto a música ofende ou não a mulher, seria contratada uma equipe especial pela Secretaria de Cultura? Haveria linguistas?

LM – Eu ainda não entrei nesses detalhes. O projeto está tramitando, inclusive, a própria vereadora Léo Kret foi uma pessoa se sentiu muito agredida no primeiro momento, perguntando o que ia controlar... O projeto está tramitando... Eu acho que a gente precisa, se for necessário, porque está colocado. A Secretaria da Mulher vai acompanhar, o Ministério Público acompanha, porque você sabe que tem inclusive algumas músicas aí que viraram processo criminal contra o compositor, A “Nega do Cabelo Duro”, aquela do fricote, de Luiz Caldas, e outra aí também que as mulheres entraram no Ministério Público com uma ação pedindo que proibisse de cantar a música, porque tinha um conteúdo racista muito forte. Então, esse detalhe, assim de quem vai fiscalizar, eu acho que hoje a agressão é tão evidente que não vejo ainda como uma necessidade. Mas eu acho também que você cria a consciência crítica, com educação, porque as pessoas questionam também que as mulheres vão lá, dançam, dão a pata... Pois é, porque nós somos formadas na cultura machista. Então, nós mulheres somos machistas porque nos ensinaram isso. E nós queremos interromper isso e contribuir com a sociedade pelo cérebro também. Não dá para você ser reduzido dessa forma à questão física e ainda com aquela coisa estereotipada que é a mulher seminua: tem que ter o corpo bonito, o peito grande, a bunda grande... e daí? Eu acho um absurdo uma coisa dessas.

BN – Qual o impacto que essa Lei vai ter em aumentar o acesso da população a informações diversificadas, para que as pessoas criem os seus próprios anticorpos e possam decidir o que querem consumir? Porque, mesmo que o Estado deixe de contratar, as rádios e TVs tocam esse tipo de música o tempo inteiro. Que impacto a senhora acha que essa lei terá sobre a população?

LM – Eu não sei medir com detalhes o impacto para a população. Agora, para quem financia esse tipo de música, eu acho que não vai ser muito legal. Mas, também, não importa. A mídia, inclusive, precisa nos ajudar nisso. Também, você sabe que hoje o gosto popular é muito influenciado. Se você não ouve, desconhece. Mas, se só lhe oferecem aquilo? E eu lhe digo agora que Camaçari está vivendo uma empolgação com a criação da Orquestra Sinfônica Popular Brasileira de Camaçari. Você precisa ver os talentos que têm surgido dos bairros populares de nossa cidade. Nessas comunidades têm pessoas com talento para música, mas só oferecem a mesma coisa para elas.

BN – Mas, voltando à prática do projeto, em 2001, a música “Tapa na Cara” causou polêmica e dividiu os artistas e as opiniões. Por um lado, Carlinhos Brown e Ivete Sangalo a defenderam, disseram que a música não agride a mulher. Outros, como Daniela Mercury e Tatau, ficaram contra. Nesse caso, a mesma lei não poderia ser aplicada de forma diferente, esquizofrênica, no mesmo Estado, contratando em um lugar e deixando de contratar em outro?

LM – Eu não vejo dessa forma não. Primeiro que eu acho que a música é ofensiva, você cantar que “tapa na cara”... Eu não lembro o conteúdo da música, mas eu me lembro que a gente participava daquele bloco “Panela Vazia” e achamos a saída de botar uma mão assim, de tapa na cara de Fernando Henrique Cardoso, que era o presidente da época. Foi outra saída para que a coisa não ficasse dirigida apenas à questão pessoal da mulher, porque a música pegou no carnaval. Mas eu acho que não tem necessidade disso. Eu acho que as pessoas têm o bom-senso e, hoje, quem está no poder sabe mais ou menos por onde é que as coisas andam.

BN – Isso pode ser em várias áreas, mas, no campo artístico, o poder se demonstrou muitas vezes incapaz de sensibilidade para essa estrutura que é muito mais sutil. Então, foram cometidos erros históricos. A censura do tempo da ditadura militar tinha também argumentos de civilização. Eles tinham métodos que hoje em dia seriam impraticáveis, mas tinham argumentos desse tipo.

LM – Eles eram burros. Quando Chico Buarque mudou de nome, eles deixaram passar todas as músicas.

BN – Exatamente. E é esse o grande medo da população, dos que estão temerosos com...

LM – [interrompendo] Os machistas!

BN – Não. É de que haja erro de interpretação. E eu não sei se Ivete, por exemplo, seria machista por achar que a música não ofende. E nem se Tatau é necessariamente um feminista por achar que ofende.

LM – Que não seja machista, mas defende aquela ideia...

BN – Não. É alguém achar que a música não passa ideia machista. A letra diz: “Se ela me pedir o que vou fazer? Meu Deus, me ajude, em mulher não vou bater. Mas ela me pede todo dia toda hora quando a gente faz amor. Ta-ta-tapa na cara!”. Descreve uma relação sexual onde a mulher pede um tapa ao companheiro, que fica inclusive temeroso, é até feminista, de que aquilo seja uma agressão, mas no final concede e dá lá uns tapinhas. A senhora acha que essa música agride?

LM – Eu acho que agride e agride muito.


"Então, quando o artista for fazer o contrato com o Estado, ele tem que estar atento ao que está proibido."

BN – Uma mulher que, em uma relação sexual, pede para tomar um tapa do companheiro, ela não se respeita?

LM – Eu não estou discutindo o que acontece entre quatro paredes, porque uma relação sexual, até agora, é uma coisa individual, privada. Agora, você generalizar isso, banalizar que, ou em uma relação sexual ou no dia-a-dia, se dê tapa...

BN – Mas a música não fala em dia-a-dia. Só em relação sexual e não é generalizado, é de um exemplo. Ele não está falando que as mulheres gostam de tomar tapa. Está falando que uma mulher com quem ele tem uma relação pede um tapa.

LM – Eu acho que é uma coisa polêmica, a arte tem isso. E cada um tem a oportunidade de ter a sua interpretação, mas eu acho que não precisa isso, porque você incentivar... porque ele não colocou que a mulher gosta de fazer um carinho de outra forma?

BN – Mas aí é censura. A senhora está querendo dizer o que o artista deveria ter dito...

LM – Não. Eu não estou achando o que o artista deve fazer, mas eu sou feminista e acho que a violência contra a mulher é o pior problema que as mulheres enfrentam e, em qualquer segmento, qualquer setor da sociedade, se alguém expressar isso ou quiser banalizar a violência contra a mulher eu reajo.

BN – Caetano Veloso incluiu o funk do “Tapinha não Dói” em um show. Esse show não seria contratado pelo governo? Ou teria uma ressalva? Ou ele teria que tirar a música?

LM – Não é contratar o show. É assim, são as músicas. Então, quando o artista for fazer o contrato com o Estado, ele tem que estar atento ao que está proibido. Que o Estado não aceita pagar músicas que tenham esse conteúdo ofensivo, desrespeitador.

BN – E seria feita uma análise prévia das músicas?

LM – Eu não acho que precisaria isso não, porque o artista sabe o que ele canta. E ele sabe o que ofende.

BN – A senhora acha então que Caetano quis ofender as mulheres quando cantou esse funk?

LM – Eu não conheço, para te dizer a verdade, a letra toda. Mas eu acho que ofende.

BN – A senhora acha que ele quis ofender?

LM – Não sei se ele fez de propósito, mas eu acho que, o entendimento dele ou a formação dele na cultura machista, ele pode até achar que isso não tem nada demais e colocou lá.


"Eu vi um cidadão dizendo que esta banda (A Bronkka) incentiva, inclusive, o uso da droga. Mas, não sei se foi para provocar. Agora, que têm o nosso repúdio se cantarem essas músicas, terão."

BN – Mas isso não comprova, então, que o projeto precisa de uma equipe para fazer a avaliação das músicas, já que o artista, que é um grande artista brasileiro, não teve o discernimento suficiente? A senhora disse que o próprio artista poderia fazer o filtro, mas temos um caso aqui em que ele não fez. Como se resolveria se, no meio do show, ficasse constatado que uma música não condiz com o contrato?

LM – Eu acho que não precisa isso, porque toda vez que você vai... Eu não sou secretária de eventos, não tenho muita experiência nessa área, mas a gente acompanha porque eu sou de Camaçari, fui vereadora lá por dois mandatos, e a gente sabe... Acho que isso poderia ficar acordado e se tem no contrato uma cláusula dizendo que se não é ofensivo... Ééé... São detalhes que eu acho possíveis de ser resolvidos. Tal música, se a banda está sendo contratada, então, por favor, não cante essa, cante outras... Ele tem tantas músicas bonitas. Ele e outros artistas. E, os que não têm a gente quer ajudar que retratem a mulher de outra forma.

BN – Mas, afinal, haveria uma equipe para ver as músicas que podem ser cantadas ou não?

LM – Veja só, o projeto de lei, na hora de ser implementado, os instrumentos da fiscalização vão acontecer e eu acho que cada instância do poder, ou prefeitura ou governo do Estado terá condição de fazer isso. Eu acho que é um detalhe. E a regulamentação de qualquer lei tem as suas instâncias, os seus técnicos. E o Ministério Público tem que estar mais atento a isso, porque esta não é uma luta menor, contra um ritmo, uma expressão artística, é uma luta das mulheres.

BN – Falando nisso, Camaçari foi o primeiro município a adotar o projeto. Mas agora a banda A Bronkka resolveu gravar o DVD lá. A senhora acha que foi coincidência ou provocação?

LM – Eu vi um cidadão dizendo que esta banda incentiva, inclusive, o uso da droga. Mas, não sei se foi para provocar. Agora, que têm o nosso repúdio se cantarem essas músicas, terão. E vamos abrir essa discussão.


"O que está hoje incomodando e agredindo assim, a olhos nus, são essas bandas e essas festas que arrastam aquela multidão e que lá a gente ouve esse tipo de música."

BN – O projeto é restrito à área musical, mas como ficariam as outras manifestações? O teatro de Nelson Rodrigues, por exemplo?

LM – Não pensei ainda em outras manifestações, até porque, o teatro ainda é uma coisa a que poucas pessoas têm acesso, até pelo custo, tanto da produção quanto do acesso, e eu acho que não há esse risco. O que está hoje incomodando e agredindo assim, a olhos nus, são essas bandas e essas festas que arrastam aquela multidão e que lá a gente ouve esse tipo de música. A música é uma expressão artística que toca muito as pessoas, mobiliza, acaba sendo assimilada no nosso subconsciente e se essa coisa vai nessa progressão que tá aí, com esse conteúdo de estraçalhar a mulher, de desqualificar, desrespeitar a mulher, isso tem que ser interrompido.

BN – Falando em acesso da população. Existe verba pública empregada em shows e ensaios de verão que, mesmo assim, cobram ingressos muito caros, o que impede a população de participar ou experimentar coisas distintas do que está acostumada. Como é que se resolveria isso?

LM – Eu acho que está errado. As bandas de nome nacional ou estadual que são contratadas em Camaçari, por exemplo, o show é aberto, todo mundo entra. Se o Estado patrocina é para todo mundo ter acesso. Você vai cobrar um preço caro? Se o dinheiro público está trazendo o artista é para que todos tenham acesso. Isso é mais uma forma de exclusão.

BN – A senhora quer deixar uma mensagem final?

LM – Quero pedir à mídia baiana e à sociedade baiana que nos ajude nessa discussão. Estamos com um abaixo-assinado que nós vamos botar na internet também, e queremos a participação das pessoas tanto apoiando a ideia do projeto quanto também pedindo pressa na Assembleia Legislativa, porque ele tem que tramitar em quatro comissões, e hoje aprovar projetos de deputados tem sido difícil. E quero dizer que estou realmente satisfeita porque consegui botar na pauta da mídia e da sociedade organizada essa questão da valorização da mulher.

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